Por Ronaldo Cunha Lima Filho
1984, Rio de Janeiro. Nesse ano (eu tinha 24), seria inaugurado o sambódromo, um grandioso projeto de Oscar Niemeyer destinado aos desfiles das escolas de samba.
Ao contrário do que vinha ocorrendo há décadas, nesse ano, por motivos alheios à minha vontade, eu não pude passar as férias de fim de ano aqui em Campina Grande.
“Sozinho” no Rio de Janeiro tive um estalo e decidi desfilar na bateria da Mangueira.
A única referência que eu tinha da tradicional escola de samba vinha de Dona Rita, a lavanderia que trabalhava na casa dos meus pais. Através dela eu me apaixonei pela verde e rosa.
Faltavam uns 30 dias para o desfile, o que dificultava sobremaneira meu ingresso na escola, principalmente na bateria. Mas eu estava decidido, obstinado.
Excetuando Dona Rita, eu não conhecia absolutamente ninguém que tivesse algum tipo de vínculo com a Mangueira. Mas eu estava decidido.
Num sábado à noite, (dia dos ensaios da bateria) na quadra que ficava no pé morro, (o morro da mangueira), dirigindo meu fiat 147, fui à quadra dos ensaios. Meio perdido, (naquele tempo não existia GPS), saí perguntando onde ficava o morro. De boca em boca cheguei à quadra.
Pensei que tivesse no céu. Num palanque distante, a bateria ensaiava, na quadra, as pessoas sambavam. A quadra coberta, era toda pintada e decorada de verde e rosa. Foi muito impactante. O espaço estava cheio, passei a vista pra ver se encontrava algum rosto conhecido. Ninguém!
Movido pelo desejo incontrolável de desfilar na bateria, respirei fundo e na cara de pau me dirigi ao palanque onde os ritmistas tocavam. De casa eu tinha trazido meu tamborim, um instrumento que eu dominava. Era com ele que eu queria desfilar.
Regendo a bateria estava o mestre Chimbico. Uma fera! Tragicamente, anos depois, ele veio a falecer consumido pela maldição do crack.
No palanque me juntei à ala dos tamborins e, muito nervoso, comecei a tocar. Olhava para o mestre temendo uma repreensão, mas pra minha alegria ele me olhou como quem aprovava o que estava ouvindo. Jamais esquecerei esse instante.
A grande maioria dos ritmistas era composta por negros que moravam no morro, nesse contexto começaram a me chamar de “Branco”. Logo fui fazendo amizades e nesse dia conheci um dos meus melhores amigos da vida, o Melô, gente da mais alta qualidade. Ele morava no Buraco Quente, a principal viela de acesso ao morro. Foi lá que me deparei com cenas só vistas em filmes de ação. Cenas inimagináveis. No buraco quente, a uns 50 metros da avenida que margeava o morro, a Visconde de Niterói, ficava instalada a boca de fumo, que vendia maconha e cocaína (o flagelo do crack ainda não havia chegado). Tomando conta do ponto se via uns 10 bandidos fortemente armados com fuzis, pistolas e metralhadoras. Colares aos monte pendurados no pescoço. Até uma granada eu vi adornando a cintura de um deles. Exceto pelas armas e penduricalhos pareciam pessoas normais, até mesmo educadas. Eles pertenciam ao comando vermelho e circulavam tranquilamente pelo Buraco Quente.
Nos anos que se seguiram, nas incontáveis vezes que fui ao morro (foram mais de 10 anos), pra tomar uma Brahma, comer uma rabada com agrião ou tomar uma substanciosa sopa no “12”, me depararei com bandidos armados até os dentes, o que que ia mudando com o tempo eram os rostos: uns iam morrendo e outros sendo presos. Esse é o destino do bandido.
Voltando ao samba. Graças a minha determinação recebi a fantasia das mãos de Totoca, um bandido que era o presidente da bateria, que contava com 300 ritmistas. Com uma toalha branca sobre o ombro e um pistola na cintura, ele dizia quem ia desfilar e quem não ia. Vi muita gente grande chorando. Já eu não acreditava que havia conseguido a minha fantasia, o passaporte para o desfile. Totoca foi assassinado uns 3 anos depois. Teve o destino da maioria.
A propósito há que se dizer: a esmagadora população do morro da mangueira (é assim em todos os morros) é composta de trabalhadores, os bandidos são uma ínfima minoria.
Eis que chegou o grande dia. Com o enredo “Yes, Nós Temos Braguinha”, depois de um jejum de 11 anos, a Mangueira venceu o carnaval. Todos me chamavam de “pé quente”.
Foi a inauguração do sambódromo e eu estava lá, feliz da vida, de tamborim na mão e lágrimas escorrendo pelo rosto
. Naquele ano a Mangueira foi a última escola a desfilar e quando a bateria chegou na praça da Apoteose, já no fim do desfile, a prefeitura mandou abrir os portões e a bateria saiu em sentido contrário na avenida puxando uma multidão. Não sei se já vivi emoção igual aquela.
A Marquês de Sapucaí foi palco de um momento histórico e eu estava lá.
Até hoje tenho amigos no morro e fora dele, o que nos une é a cor do sangue: nosso sangue é verde e rosa. “Tem que respeitar meu tamborim”
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