Mulher relembra fala de delegado em primeira denúncia de violência doméstica, na PB: 'volte para casa'


Quando Ildete Lima foi vítima de agressão pelo marido, as campanhas sobre denúncias ainda eram pequenas. Primeiro, foi empurrada e atingida por um livro. Depois, em outro episódio, teve o corpo inteiro espancado, dentes quebrados. Quando olhou para as mãos, só enxergava sangue. Correu sem saber para onde ia, até chegar em uma rodovia e pedir ajuda a um motorista de ônibus. “Me leve até a delegacia”, ela disse. Ele a levou. Quando chegou no local, não especializado para casos como esse, o delegado era primo do agressor. “Volte para casa, é mais uma briga”, disse a autoridade. Isso foi há cerca de vinte anos. De lá para cá, muita coisa mudou. Inclusive, o modo de como receber a denúncia.
As primeiras Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher da Paraíba foram criadas pelo Decreto 11.276/86, no ano de 1986, nas cidades de João Pessoa e de Campina Grande, de acordo com a delegada geral da mulher, Maísa Félix.
Atualmente, existem 14 Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, nos municípios onde há maior número de casos de violência doméstica: João Pessoa (Deam Norte e Deam Sul), Campina Grande, Bayeux, Santa Rita, Cabedelo, Mamanguape, Guarabira, Picuí, Monteiro, Queimadas, Patos, Sousa e Cajazeiras. Também há um Núcleo de Atendimento à Mulher no município de Esperança.
No começo de tudo, com 26 anos, o companheiro de Ildete não demonstrava nenhum sinal de violência. Foram três meses de relacionamento para os dois decidirem morar juntos. Ciúmes já existiam, mas Ildete considerava algo natural. Depois, tudo foi se agravando. Se ela demorasse a chegar em casa, ele desconfiava. Se pegava carona para voltar do trabalho com algum homem, era motivo de briga e ciúmes. “Na mente dele, todos que iam na recepção namoravam comigo. No começo era aquele ciúmes besta, não batia em mim”, declara.
Com dois anos de relacionamento, após uma seresta em que ela encontrou um ex-namorado, tudo começou a se revelar. Quando chegaram em casa, ele começou a xingar Ildete e fazer pressão psicológica. Em seguida, a empurrou, ela caiu, e ele jogou um livro que atingiu o ombro dela. Ela sentiu a dor e começou a chorar. Ele a mandou parar e, no dia seguinte, disse que ela não iria trabalhar. E não foi. “Disse que estava doente”, confessa. Ficou a mentira e a marca no ombro.
“Se você contar a alguém, Ildete, eu dou em você”, disse o marido. No outro dia, pediu desculpas. Disse que não faria mais.
Depois de um tempo, o relacionamento melhorou. No entanto, para isso, Ildete deixou de pegar carona para casa e passou a evitar atitudes que pudessem provocar alguma briga entre os dois. Deixou de usar short curto, trocou o biquíni pelo maiô, a calça do trabalho por uma saia longa. Fez um blazer para usar por cima da regata que era farda do trabalho. Apenas ela usava o blazer. Batom escuro também foi proibido para que nenhum homem olhasse para a boca dela. Com menos de trinta anos, Ildete se vestia como uma senhora.
“Eu estava tão obcecada por ele que eu não via as coisas erradas. Ele estava me dominando, sabia que eu tinha medo”, revela.

Depois passou a trabalhar com ele. Foi morar em um bom apartamento, na praia, tinha de tudo. Mas não tinha liberdade. Nem à praia podia ir sozinha. “Ele tirou tudo de mim e eu não estava notando isso. Eu estava ficando presa em casa”, conta com indignação. Mas não queria voltar para casa dos pais porque tinha problemas com a mãe. Dependia do marido, não recebia salário dele e tudo era ele que pagava.
Durante as crises de ciúmes, ele começava a beliscar a perna dela, dizendo: “quando a gente chegar em casa, a gente se ajeita”. Ildete passou também a ser estuprada. Fazia relações sexuais por obrigação dele. Em um dia de ciúmes, porque um homem olhava na direção dela durante uma seresta, Ildete sofreu.
“Ele bateu em mim essa noite, apanhei muito”.
A família dele era bastante conhecida. Além disso, possuía muito dinheiro. E, por isso, humilhava Ildete, que veio de uma família humilde. Durante uma discussão com a então sogra, ela perdeu o primeiro filho e passou a ter um problema no útero. Para ter filho novamente, precisou fazer um tratamento. Por isso, ele também se desculpou. Disse que não iria mais acontecer.
Foi quando foram morar em Natal, no Rio Grande do Norte, para ele trabalhar. Lá, os ciúmes pareciam ter acabado. Ela engravidou, teve uma gravidez tranquila e nove meses sem brigas. Decidiu ter a filha em João Pessoa, recebeu toda assistência do marido e a criança teve “tudo do bom e do melhor”. “Eu não morria mais de amor por ele, mas eu gostava dele e queria uma vida melhor para minha filha, porque eu não tive. Eu queria criar minha filha de um jeito diferente que minha mãe me criou”, desabafou. Com três dias de nascida, voltaram para o RN.
Certo dia, sem mais aguentar a prisão em que vivia, querendo liberdade e viver a vida que não vivia mais, disse que queria se separar. “Eu está ficando louca”, disse. “Você não se separa de mim nunca, você vai ver que não vive sem mim. Se você se atrever, eu te mato. Ele bateu em mim nessa noite. Apanhei muito, de chute, de tudo, fiquei toda cheia de hematoma. Ele só deixava hematoma onde ninguém mais pudesse ver”, conta.
Passou oito meses vivendo dessa forma. Calada. Apanhava por qualquer motivo, até porque o feijão estava ruim. Não podia sair da mesa até que ele terminasse de comer. O tempo passou, morou ainda seis meses no Rio Grande do Norte. Depois voltou novamente para João Pessoa e pediu, mais uma vez, para se separar. Ele concordou, mas disse que ficaria com a filha.
Em briga judicial, foi determinado que a criança ficaria quinze dias com um e quinze dias com outro. Por isso, a separação só durou um mês. “Minha filha teria quinze dias de educação rica e quinze dias de educação pobre”, disse. Ildete voltou o casamento pela filha. E ouviu do pai: “no dia que ele tirar sangue de você, se separe”. Daí em diante continuou uma rotina de agressões.
Em um dia na praia, um homem sentou com a filha ao lado dela e da filha dela. O marido de Ildete se levantou de onde estava e começou uma discussão devido aos ciúmes. Na saída da praia, ela começou a receber beliscões na perna. “Eu sabia que eu ia apanhar naquela noite. Minhas pernas tremiam e eu sabia que eu não poderia chorar”, conta. Ela queria gritar e fugir, mas não conseguia reagir.
“Foi o pior dia da minha vida. Ele ligou o som bem alto. Coloquei minha filha, com dois anos, para dormir e fui para sala. E apanhei. Apanhei, apanhei. Quando olhei para minha boca toda cheia de sangue, meus dentes estavam quebrados. Foi ali que eu tive a coragem e lembrei da frase do meu pai. Eu saí correndo”, se emociona.
Ildete correu pelo bairro até chegar em uma rodovia. Conta tudo isso com lágrimas. Um ônibus parou e o motorista a levou até a delegacia da Avenida Epitácio Pessoa. A filha ficou no berço, dormindo. Correu do perigo, em busca de sobrevivência. Deixou a filha para sobreviver. Quando chegou na delegacia, o delegado era primo do agressor. “Lave seu rosto e volte para casa, isso é crise de ciúmes dele”, disse o delegado.
“Eu não vi que deixei minha filha para trás. Estava tão cega…”, lamenta.

Filha roubada e busca por liberdade

No dia seguinte, sem ter feito a denúncia, Ildete foi em busca da filha. Quando chegou no prédio, ele não estava mais lá e havia fugido com a criança na mesma noite da fuga de Ildete. Ela deu entrada com ação na Justiça para ter a filha de volta e por toda violência que sofreu. A ameaça era diária. O homem só queria devolver a filha se Ildete voltasse para ele. Ligava e colocava a menina para chorar ao telefone.
Foram três meses sem a pequena e em busca dela. Para iniciar o processo judicial, denunciou o marido por agressão e pelo rapto da criança, em uma delegacia no Centro de João Pessoa. Era uma delegada, que ouviu com atenção e cuidado. Ildete contou tudo. “Eu julgava muito, dizia que as mulheres eram bestas porque apanhavam caladas. Mas o medo é muito grande. Se ele só me ameaçasse… Mas ele ameaçava tirar a filha de mim”, disse.
A delegada disse que iniciaria a investigação. Mas em todas as burocracias e lugares que precisava frequentar para conseguir a filha de volta, Ildete parava em algum membro da família do marido. E tudo recomeçava. A busca parecia sem fim. E quase impossível.
A criança só voltou para os braços da mãe quando Ildete conheceu uma mulher da cidade de Itabaiana. Essa mulher orientou a Ildete a procurar um desembargador de João Pessoa. Quando ela chegou no gabinete dele, ouviu uma voz de esperança: “pode ir para casa, em vinte e quatro horas sua filha estará com você”. O pai da criança ligou logo depois para Ildete e mandou ela buscar a criança no dia seguinte, em lugar marcado. Quando o ônibus parou, ela pegou a criança e saiu correndo. Deixou mala e tudo para trás. Correu até a casa, que era próxima do local, e se trancou com a criança.
Para hoje viver com a filha sem depender de nada do marido, Ildete abriu mão de tudo. Pensão, bens ou qualquer tipo de acordo. Ainda houve algumas audiências, brigas e outros episódios em que o marido levou a menina novamente. Além disso, Ildete absorvia tudo que assistia na TV. Vivia vestida de medo. Mas abraçada na filha. Foi morar com a mãe e com o pai e voltou a trabalhar.
O pai se afastou da filha, ainda liga algumas vezes, mas não há proximidade. Não ajuda as duas com nenhum dinheiro. Hoje, com a casa alugada, mas a liberdade conquistada, Ildete vive da renda de uma venda que mantém ao lado da residência dela. A filha também ajuda no que pode, trabalhando e estudando. Uma dupla de mulheres guerreiras que escolheram viver pela independência e pela liberdade de serem quem são e quem querem. Estão juntas e livres desde 2013.
“A gente fica muito marcada. É um trauma que não sai nunca. Não tem como esquecer. Tenho marcas na boca, nos meus dentes, na perna. Quando vejo uma mulher apanhando, mas com o olhar dizendo para não chamar a polícia, é mais forte do que pegar o telefone e ligar, eu não julgo mais”, declara.
Naquela época, pensar em denunciar era um problema para Ildete. Difícil. Hoje, ela ainda não se sente segura. “A gente tem que pensar mesmo antes de fugir de um homem. É muito fácil dizer para ir na delegacia denunciar. Quando um homem quer matar uma mulher, isso não é nada. A Lei Maria da Penha não valeu de nada para mim. O que valeu foi a lei dele”, revela.
O recado que ela deixa para mulheres que vivem em situação de violência é ter coragem e acreditar nelas mesmas. “Enquanto um homem está próximo a você para te matar, a polícia está a quilômetros”, lamenta.

Como denunciar?

Os casos devem ser analisados separadamente, conforme explica a delegada geral Maísa Félix:
  1. quando a denúncia é feita pela própria vítima, através do 190, a Polícia Militar conduz a vítima e o suspeito (quando é imediatamente localizado) até a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher para averiguação, onde a delegada escuta a vítima e, se for o caso, já realiza o auto de prisão em flagrante, com interrogatório do suspeito, das testemunhas. Ao serem concluídas as investigações, a delegacia remete o inquérito para a Justiça, onde transforma-se em um processo e segue os trâmites legais até o julgamento do caso.
  2. Quando a vítima aciona a Polícia Militar, porém o suspeito não é localizado, a vítima é conduzida até a delegacia, onde é instaurado o inquérito policial por portaria e a Polícia Civil faz o trabalho investigativo para localizar o suspeito, concluir o procedimento e remetê-lo à Justiça.
  3. Na maioria dos casos, é a própria vítima quem procura a delegacia para fazer o relato da violência sofrida. Nesses casos, o inquérito policial é aberto, ela é orientada a levar duas testemunhas para instruir o procedimento e a Polícia Civil faz o trabalho investigativo para localização do suspeito, interrogatório do mesmo e conclusão do inquérito para remessa à Justiça.
  4. Nos casos de denúncia anônima, que podem ser realizadas através dos telefones 197 ou 180, cabe à Polícia Civil realizar as investigações para averiguação da denúncia e localização do suspeito. A partir daí o inquérito segue o trâmite normal.
Nos municípios onde não há Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, as vítimas de violência doméstica devem procurar a delegacia municipal, onde deve ser realizado todo o atendimento padrão.
Além das atividades educativas e de conscientização sobre violência doméstica junto à população, a Coordenação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher da Paraíba (Coordeam) realiza cursos e palestras destinadas aos profissionais da segurança pública que atuam no Estado, sobre qualidade no atendimento e acolhimento humanizado às vítimas de violência doméstica, para garantir a excelência no atendimento às mulheres que procuram as delegacias para relatar situações de violência, mesmo nas localidades que não possuem as delegacias especializadas.
Triagem é feita durante denúncia de violência contra a mulher — Foto: Betta Jaworski/G1Triagem é feita durante denúncia de violência contra a mulher — Foto: Betta Jaworski/G1

Assistências para as vítimas

Quando a vítima chega a uma delegacia da mulher, ela é recepcionada por um(a) operador(a) de segurança, que faz uma triagem rápida, sobre a natureza da ocorrência e o local, apenas para confirmar se o procedimento será de competência da própria delegacia da mulher ou se a vítima precisará ser encaminhada a outra delegacia. Essa triagem tem como objetivo dinamizar o atendimento e evitar a revitimização, evitando que a vítima relate sua história de agressão mais de uma vez.
Logo em seguida, a vítima é encaminhada para o gabinete da delegada, onde explica a violência sofrida e, com base nas informações colhidas, a delegada instaura o inquérito policial ou, se for o caso, faz o boletim de ocorrência. Ao longo do atendimento, a autoridade policial explica o direito da vítima de solicitar medidas protetivas, de ser incluída no Programa Patrulha Maria da Penha, no Programa SOS Mulher Protegida e de ir para a Casa Abrigo (em caso de grave ameaça, quando a vítima não tem onde ficar em segurança).
Cada atendimento é totalmente individualizado e os procedimentos a serem adotados dependem da situação específica de cada vítima.
Denúncias e medidas protetivas em 2019 na Paraíba
Mulheres pedem mais proteção, mas não dão andamento a investigações
Medidas protetivas: 4.941Inquéritos policiais: 4.624
Medidas protetivas
4.941
Fonte: Coordeam
O número de medidas protetivas solicitadas em 2019 ultrapassou o total de inquéritos instaurados em relação à violência contra a mulher, na Paraíba. Isso significa que muitas mulheres não denunciam e decidem não abrir investigação contra o agressor, mas solicitam a medida protetiva. Os dados são da Coordenação das Delegacias de Atendimento a Mulher da Paraíba.
No total, foram 4.941 medidas protetivas solicitadas e executadas em 2019, contra 4.624 inquéritos policiais instaurados para investigar casos de violência doméstica.
O mês mais violento e que mais teve mulheres agredidas, considerando a quantidade de denúncias, foi o mês de maio, com 473 investigações abertas. Em contrapartida, o mês de novembro teve mais medidas protetivas solicitadas, foram 477.



G1

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