Ódio pandêmico



Eu tenho me declarado incompatível com clamores para produtividade. Também não fiz bolo. Não bordei. Não arrumei gavetas. Não participei de cursos gratuitos. Não assisti a maratonas de séries na Internet.

Minha receita para manter a sanidade mental, atributo tão propagado por mim como fruto de luta que não cessa, tem sido uma espécie de torpor. De recolhimento. De aversão às notícias e à profusão de informações. Tenho gostado de enviar e receber recados. De ouvir os relatos de pessoas que conheço e busco e, sou por elas buscada. Algo miúdo. Restrito. Em linha direta com quem faz parte do meu convívio. Assim, busco também não me perder na virtualidade.

Mas ela ainda me encontra. E de forma reiterada tem chegado na forma de memes e de outras brincadeiras online que remetem ao quanto estar ao lado de parceiras, companheiras, mulheres, esposas, mães e filhas, seria insuportável (para os homens) no contexto do isolamento social.
Como para avalizar ou tornar mais palatável o momento, no conhecido senso de humor da Internet, transformada em geradora anônima de conteúdo, chovem cards, vídeos, montagens e outras peças produzidas para as mais diversas Redes Sociais. Elas são postas adiante, de forma desavisada, até mesmo pelo mais ‘desconstruidão’ membro dos grupos de What App que a gente respeita.
Dão conta de maridos oprimidos. De companheiros dilacerados. De depoimentos de homens – negros, não negros, jovens, idosos, brasileiros, estrangeiros – prontos para correr qualquer risco. Para sair de uma quarentena. Para voltar ao trabalho. Tudo. Qualquer coisa. Menos permanecer ao lado das mulheres com as quais convivem.

Preferem o vírus. Preferem a morte. Dizem querer voltar ao trabalho. Não aguentam ouvir o que elas falam. Não suportam receber ordens. Alardeiam que as mulheres estão sem chão. Sem nada a fazer - a não ser lhes importunar. Sequer podem parecer melhores – já que não vão poder frequentar os (agora fechados) salões de beleza.

A misoginia em sua expressão mais cruel. De novo. 

Não são engraçados os conteúdos. Mostram. Escancaram. Uma contradição. O que querem esses homens ao lado de uma mulher – se diante de um cenário de morte, desespero e quebra de paradigmas – o que lhes vêm à mente como um primeiro recurso de salvação é se afastar dela? 
É ali, em casa, onde todos estão convidados a ficar no espaço privado, onde devem reinar os propalados valores da família de bem, que o perigo se mostra outra vez. É de onde sairão os abusos, os espancamentos, a violência e, corpos, de vítimas não de Covid-19. Mas de feminicídios.
Muitos países, incluindo o Brasil, registraram o aumento no número de casos de violência contra a mulher. Precisaram criar estratégias de apoio, denúncia e prevenção em meio às restrições impostas pela pandemia que mudou a forma de relacionamento intra e extramuros. Piorando quadros que já se mostravam pungentes antes.

Para as mulheres. Sobre as quais recai, até na pandemia, ódio travestido de humor. Para elas que, ademais, sempre serviram para escárnio do mundo. Além de alvo de seus crimes. Eu desejo um retorno ao mundo quando o mundo voltar, livres de tudo e todos que as sujeita.

E se o normal para as mulheres, para as mulheres negras, é o risco e a objetificação, além de estar nos piores índices e estatísticas e ser vítimas de seus atuais e ex-companheiros, desejo que a reconstrução do mundo e de cada mulher, seja anormal – quando e se as coisas voltarem a ter  status  de normalidade – passe pelo fim de todas as formas de opressão e, liberte a todas do ódio pandêmico que há muito as ameaça. E mata. Virulento comportamento patriarcal. Que põe a todas nós em risco. Sem trégua. Desde que o mundo é mundo.

Texto de Waleska Barbosa @carnawaleska - Autora de “Que nosso olhar não se acostume às ausências” (Brasília,  Edição Indenpendente,2019), para o @bora_cronicar

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