Cinquenta anos de um movimento que une cultura popular e arte erudita


Uma estética literária e artística que une as raízes nordestinas com a cultura erudita parece complexo, mas o gênio de Ariano Suassuna fez com que essa estética influenciasse diversos artistas e servisse para colocar o Nordeste como base de uma discussão sobre os caminhos da nossa arte. O Movimento Armorial está chegando aos 50 anos de criação e continua gerando debates e reflexões.
O Movimento surgiu sob a inspiração e direção de Ariano Suassuna, com a colaboração de um grupo de artistas e escritores da região Nordeste do Brasil e o apoio do Departamento de Extensão Cultural da Pró-Reitoria para Assuntos Comunitários da Universidade Federal de Pernambuco. Foi lançado oficialmente no Recife, com a realização de um concerto e uma exposição de artes plásticas realizadas no Pátio de São Pedro, no centro da cidade.
Seu objetivo foi o de valorizar a cultura popular do Nordeste brasileiro, pretendendo realizar uma arte brasileira erudita a partir das raízes populares da cultura do país. Na época, Ariano dizia que sendo “armorial” o conjunto de insígnias, brasões, estandartes e bandeiras de um povo, a heráldica é uma arte muito mais popular do que qualquer coisa. Desse modo o nome adotado significou o desejo de ligação com essas heráldicas raízes culturais brasileiras.
Apesar do nome, o Movimento sempre teve interesse pela pintura, música, literatura, cerâmica, dança, escultura, tapeçaria, arquitetura, teatro, gravura e cinema. E uma grande importância é dada aos folhetos do romanceiro popular nordestino, a chamada literatura de cordel, por achar que neles se encontra a fonte de uma arte e uma literatura que expressa as aspirações e o espírito do povo brasileiro, além de reunir três formas de arte: as narrativas de sua poesia, a xilogravura, que ilustra suas capas e a música, através do canto dos seus versos, acompanhada por viola ou rabeca.
Nomes importantes da cultura nordestina, além do próprio Ariano Suassuna, estão entre as referências do Movimento Armorial, como Guerra-Peixe, Antonio Madureira, Francisco Brennand, Raimundo Carrero, Gilvan Samico, Maximiano Campos entre outros, além de grupos como o Balé Armorial do Nordeste, a Orquestra Romançal e o Quinteto Armorial. Conversamos com alguns nomes sobre a importância do Movimento e suas influências na cultura brasileira nos dias de hoje.
Uma arte não elitista
O escritor e compositor Braulio Tavares entende que o momento fundador do Movimento foi a publicação do Romance da Pedra do Reino, de Ariano Suassuna, em 1971. “Houve uma grande repercussão no meio literário brasileiro e isso serviu para popularizar todo o restante do trabalho coordenado por Ariano na música, nas artes plásticas, etc. Sem ser propriamente um ‘tratado estético’ ou um ‘manifesto’, o romance trazia embutida em si toda a estética do movimento, e não só isso; é um romance excepcional mesmo que não houvesse movimento algum em torno dele”, destaca.
O Movimento Armorial surgiu para Braulio quando ele morava em Belo Horizonte e estudava cinema da Universidade Católica, em 1970-1971. Através dos poemas de Ariano, de Marcus Accioly e outros ele retomou contato com suas memórias de infância e os versos dos cantadores de viola, o galope beira-mar, o martelo agalopado, as sextilhas dos folhetos de cordel.
– Foi algo que me reconciliou com minhas origens nordestinas, numa época em que eu estava muito voltado para o rock internacional, o cinema de vanguarda, o surrealismo francês, etc. Não precisei abrir mão de nada disto, mas a cultura popular nordestina veio se somar a tudo que eu considerava (e ainda considero) importante. Tive alguns momentos de rejeição, no início, porque o Movimento Armorial surgiu por entre polêmicas. A principal delas era a oposição entre o Armorial e o Tropicalismo, duas maneiras diferentes de abordar a “brasilidade”, mas que hoje não vejo problema nenhum. Continuo admirando os dois movimentos; tenho críticas a este ou aquele aspecto, como tenho com relação a tudo, mas cada um tem sua importância – comenta.
Braulio lembra que uma crítica que na época se fazia ao Armorial era a de um suposto “elitismo”: de que ele pegava inspiração na cultura popular mas a levava para os salões da burguesia. “Eu vejo o contrário: levava para dentro do campus universitário, das universidades públicas (onde a cultura popular era até então solenemente ignorada). Foi o único movimento estético importante, no Brasil, que surgiu de dentro da universidade. Não acho isso elitismo, acho quebra de barreiras”, rebate.
Para Braulio a influência da pessoa e da obra de Ariano Suassuna ainda é muito grande nos tempos atuais. Segundo ele, há numerosos grupos musicais que dão suas versões próprias ao tipo de arranjo e composição do Quinteto Armorial, da Orquestra Armorial, etc. Uma quantidade imensa de xilógrafos se beneficiou das experiências temáticas e simbólicas de Samico, e assim por diante.
“O que prejudica em parte a expansão dessas conquistas estéticas é que um movimento dessa natureza acaba gerando conceitos de ‘filiação’ aos quais muitos artistas não se adaptam. Basta um sujeito fazer um livro ou peça ou quadro ou disco com mais e tais características para ser chamado de ‘seguidor de A’, ou “discípulo de B”, ou ‘influenciado por C’, e há quem não queira ser classificado assim. O que predomina, em última análise, é a força pessoal da obra de cada autor. Por exemplo: sou admirador de vários romances que talvez não existissem se não tivessem o precedente do Romance da Pedra do Reino, mas ninguém pode negar que cada um deles exprime a pessoa do seu autor, que não é um mero discípulo ou imitador. Livros como o Romance da Besta Fubana de Luís Berto ou As Pelejas de Ojuara de Nei Leandro de Castro têm luz própria, voz literária própria, nem podem ser chamados de ‘romances armoriais’ mas fazem parte da mesma explosão de cultura popular através da literatura”, analisa.
Braulio avalia que todo movimento que produz um impacto estético verdadeiro (e isto inclui sua temática, sua simbologia própria, sua releitura da memória coletiva) nunca desaparece. “Para ir num exemplo bem distante – talvez o Romance Gótico esteja mais vivo e mais forte hoje (e impregnado do espírito de hoje) do que no século 18, quando surgiu”, completa.
Cultura brasileira no centro do debate
O escritor Raimundo Carrero concorda com Braulio de que o grande momento do Movimento Armorial foi o lançamento d` A Pedra do Reino, unindo a literatura brasileira, com erudição. “Lancei o Movimento Armorial com Ariano, ,no momento em que começava minha carreira literária e escrevia A História de Bernarda Soledade. Assim a influência era inevitável”, conta.
Conforme Carrero, o Movimento Armorial está presente em todo o debate sobre a cultura brasileira. “Era o sonho de Ariano, colocar a cultura brasileira no centro do debate. Ele se renova permanentemente com os novos artistas em todas as áreas da cultura”, define.
Jornalista, radialista, professora aposentada de literatura brasileira, Eleuda de Carvalho, ao falar dos momentos marcantes do Movimento Armorial, se reporta logo aos anos 1990, quando Ariano, se aposentando da universidade, empreende a jornada pelo Brasil adentro renovando o conceito inclusivo do movimento que ele havia criado duas décadas antes. “Nos democráticos e problemáticos anos 90, e adentrando o novo milênio, Ariano transita pessoalmente e desde então virtualmente com sua fala a um tempo amorosa, irônica e mesmo paradoxal, quando centrava suas palavras mais contundentes para a avassaladora cultura de massa que sempre foi terreno fértil de fascismos”, observa.
Segundo afirma, a obra e a estética de Ariano Suassuna deram suporte existencial aos seus textos e aulas desde então. “A partir de 1996 quando o conheci pessoalmente e até um ano antes de sua passagem (em 2014 fui ensinar no Tocantins) acompanhei e registrei suas palestras, seu livro síntese, e a sua concepção de cultura com ênfase na dimensão popular pautaram desde minha dissertação de mestrado – sobre o Romance d’A Pedra do Reino, e principalmente a tese, um estudo sobre Canudos, Juazeiro do Norte e o Contestado, tema surgido numa entrevista com o ilustre paraibano”, explica.
E onde e como o Movimento Armorial está inserido em 2020? Eleuda entende que na resistência da periferia, nos saraus e slams, “embora Ariano Suassuna com certeza soltasse sua verve sobre a ‘ingrisia’ do nome, como fizera com o Mangue Beat/Bit”.
Eleuda acrescenta que arraigado na tradição da cultura popular, imerso nessas fontes inesgotáveis, resilientes e generosas, o movimento Armorial segue, incorporado a heranças patrimoniais e mais ainda no trato anônimo dos artistas peregrinos e erráticos.
Linaldo Guedes é poeta, jornalista e editor. Com 11 livros publicados e textos em mais de trinta obras nos mais diversos gêneros, é membro-fundador da Academia Cajazeirense de Artes e Letras (Acal) e editor na Arribaçã Editora. Reside em Cajazeiras, Alto Sertão da Paraíba, e nasceu em 1968.


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