Talibã ameaça EUA caso prazo para retirada de tropas seja estendido


Soldado afegão morre em tiroteio em torno de aeroporto; grupo cerca último bolsão rebelde

 SÃO PAULO

O Talibã afirmou que não permitirá a extensão do prazo para a retirada de forças ocidentais do Afeganistão, marcado para o próximo dia 31. "É uma linha vermelha", disse o porta-voz Suhail Shaheen.

"Se EUA ou Reino Unido buscarem tempo extra para continuar a evacuação, a resposta é não. Ou haverá consequências. Se pretendem continuar a ocupação, isso vai provocar uma reação", escreveu no Twitter. 

O ultimato ocorre em meio à desesperada operação ocidental de retirada de cidadãos e aliados afegãos por meio do aeroporto de Cabul, local onde EUA e outros países mantêm hoje sua derradeira presença diplomática no país.

O Talibã derrubou o governo de Ashraf Ghani no dia 15, após uma campanha militar avassaladora de duas semanas.

O grupo havia sido expulso do poder em 2001 pelos EUA, que atacaram o Afeganistão por ter dado abrigo à rede Al Qaeda quando os terroristas planejaram e executaram os atentado do 11 de Setembro.

Desde então, há uma corrida para tirar do país ocidentais e civis temerosos da volta do regime medieval do Talibã, que governou com crueldade de 1996 até 2001 e agora promete agir com moderação, embora poucos acreditem. Já foram evacuadas 37 mil pessoas, segundo os EUA.

Mas a confusão continua, ainda que não tenham ocorrido mais cenas como a invasão da pista do aeroporto, com afegãos caindo para a morte após terem se agarrado a um cargueiro americano em decolagem.

Nesta segunda (23), ao menos um militar afegão trabalhando com os ocidentais foi morto em um tiroteio com pessoas não identificadas, elevando para 21 o número dos que perderam a vida na operação de evacuação —muitos foram esmagados nas filas intermináveis em torno do aeroporto.

O prazo de 31 de agosto foi definido pelo presidente americano, Joe Biden, e foi o gatilho para a ofensiva do Taleban. Quando ela começou, mais de 95% das tropas dos EUA já haviam deixado o país. Com a crise da evacuação, cerca de 6.000 militares foram enviados por Washington para tentar controlar o caos.

Outros países, como Reino Unido, Alemanha e França, também enviaram homens. Os números de pessoas ainda a serem evacuadas, em especial afegãos que trabalhavam com os ocidentais e temem retaliação talibã, é incerto.

Por isso, o governo britânico deverá sugerir ao americano a extensão do prazo, segundo relatos da imprensa britânica. O primeiro-ministro Boris Johnson pretende levar a ideia a Biden na reunião virtual do G7 nesta terça (24), o que levou à reação do Talibã.

No domingo (22), o presidente dos EUA dissera que as tropas poderiam ficar mais do que o prazo se fosse necessário. "Deixe-me ser claro. A evacuação de milhares de Cabul será dura e dolorosa. Nós temos um longo caminho e muita coisa pode dar errado", afirmou.

É uma modulação de discurso ante a debacle mundial que a humilhação da volta do Talibã ao poder e as cenas caóticas que se seguiram proporcionaram a Biden.

Amparado no fastio do americano com os 20 anos de guerra, que custaram US$ 2,3 trilhões e 170 mil vidas (a maioria das quais de afegãos), segundo estudo da Universidade Brown, o presidente anunciou em abril que cumpriria o acordo de paz costurado pelo antecessor, Donald Trump, com os talibãs.

Só que houve um enorme erro de inteligência no caminho, dado que o governo americano se disse surpreendido pela velocidade da queda das forças de Ghani. O "momento Saigon", em referência à fuga da capital sul-vietnamita quando os comunistas a tomaram em 1975, chegou para Biden.

Além da questão humanitária, há outros problemas decorrentes da situação no aeroporto. Cerca de 500 toneladas de medicamentos estão retidos no local devido à crise, num país em que metade da população recebe algum tipo de auxílio externo.

Enquanto isso, o Talibã segue tentando organizar um governo funcional. Nesta segunda, indicou um presidente interino do Banco Central, que terá a quase impossível missão de reaver cerca de US$ 9 bilhões que o país tem em reservas no exterior, a maior parte nos EUA. Shahenn disse, contudo, que o país só terá um novo governo de fato quando todos os ocidentais tiverem deixado Cabul.

Ao mesmo tempo, o Talibã anunciou nesta segunda ter cercado, no vale de Panjshir, 100 km a noroeste da capital, as forças remanescentes que se opõem ao grupo fundamentalista.

A região é historicamente refratária ao grupo por motivos tribais: é majoritariamente tadjique e uzbeque, enquanto os fundamentalistas são de extração pashtun, a etnia principal do país (40% dos 37 milhões de habitantes).

Nos anos talibãs, os cerca de 10% do território afegão onde fica o vale nunca foram conquistados, sendo governados pela antiga Aliança do Norte.

Uma reedição do grupo rebelde está sendo ensaiada com o nome de Frente Nacional de Resistência, comandada pelo ex-vice-presidente Amrullah Saleh e por Ahmad Massoud —filho do lendário comandante da primeira Aliança, Ahmad Shah Massoud, morto em 2001.

Segundo o porta-voz Zabihullah Mujahid, os talibãs não querem entrar em confronto direto com os rebeldes, e sim negociar um acordo. Com efeito, não houve combates na região desde a quinta passada (19), e o embaixador russo em Cabul tem servido de intermediário entre as partes.

Se a paz for alcançada, será um gol diplomático para Vladimir Putin, que tem buscado uma posição de mediador regional, visando estabilidade no seu flanco centro-asiático. Já a China tem apoiado mais incisivamente o Talibã, buscando ser fiadora de uma situação controlada em sua fronteira oeste.


Folha

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