Calote: Paraíba pagou 3150% acima do custo de produção por respiradores que não foram entregues

Em meados de fevereiro, o engenheiro Antonio Carlos Alvarez Fasano foi procurado por assessores de um colega dos tempos de Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), o ministro da Ciência e Tecnologia Marcos Pontes. Na época, a Covid-19 se alastrava pela Europa, e o governo brasileiro sabia ser questão de tempo até o vírus chegar ao Brasil – o primeiro caso da doença seria registrado em São Paulo no fim daquele mês. Os assessores, entre eles também alguns colegas de ITA, propunham que Fasano, dono de uma fábrica de equipamentos de automação industrial, desenvolvesse um ventilador mecânico pulmonar com tecnologia nacional. O ministério sabia que o aparelho, essencial para a sobrevivência de infectados pelo coronavírus nos hospitais, seria objeto de cobiça de governadores e prefeitos. “Eles me disseram que, se eu quisesse fazer a diferença, aquele era o momento”, recorda Fasano.

Foram dois meses de pesquisa até o desenvolvimento do ventilador, batizado de “Respira Brasil”, feito com tecnologia brasileira, com exceção das válvulas, importadas do Japão. “O nosso ventilador não está muito atrás dos outros. Fizemos testes na Santa Casa de São Paulo e os médicos gostaram muito”, diz o engenheiro. Para montar o equipamento, Fasano associou-se à Biogeoenergy, de Araraquara, interior paulista, uma empresa polivalente: fabrica de fornos industriais a dessalinizadores de água; faz projetos para usinas hidrelétricas e tratamento de esgoto. Paulo de Tarso Carlos, filiado ao PL, apresenta-se como CEO da empresa, destaca reportagem da Piauí.

Para concluir o projeto dos ventiladores, Carlos contratou a Hempcare, uma importadora de cannabis para fins medicinais sediada em São Paulo, como “distribuidora exclusiva” do “Respira Brasil”. “Quando percebemos que os respiradores importados, que são quase três vezes mais caros que os nossos, tinham longa espera para a entrega, resolvemos investir aqui, gerar emprego e salvar pessoas”, disse Cristiana Prestes Taddeo, dona da Hempcare, em maio.

No início de abril, a Hempcare assinou um contrato de 48,74 milhões de reais para o fornecimento de trezentos ventiladores pulmonares ao Consórcio do Nordeste, um pool formado pelos nove estados da região para a realização de várias parcerias, incluindo a aquisição de insumos e equipamentos utilizados no combate ao novo coronavírus. Tudo foi pago antecipadamente. Seriam sessenta aparelhos para a Bahia e trinta para cada um dos demais estados. Segundo a assessoria do consórcio, o contrato previa o fornecimento de aparelhos importados da China. No entanto, ainda de acordo com o consórcio, a Hempcare pretendia entregar ventiladores “Respira Brasil”, que não têm registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Consultado pela piauí, um médico intensivista que atua como representante de uma fabricante de ventiladores há mais de duas décadas no mercado brasileiro, afirma que o “Respira Brasil” usa tecnologia obsoleta, de vinte anos atrás, e que não é adequado para atender pacientes de Covid-19 em estado muito grave. “Esse equipamento não permite mensurar a real necessidade de oxigênio do paciente nem saber o grau de infecção pulmonar. É como um Fusca sem velocímetro. Você vai às cegas”, compara. Segundo ele, o custo de produção de um equipamento com as características do “Respira Brasil” não ultrapassa 5 mil reais. A piauí obteve planilhas de uma empresa terceirizada pela Biogeoenergy que apontam um custo de 2 mil reais para cada ventilador. Cada equipamento, portanto, seria entregue ao Consórcio do Nordeste por 162,5 mil reais, ou 3.150% a mais do que o custo de produção (considerando aqui o valor de 5 mil reais por equipamento). Para efeito comparativo, o ventilador pulmonar importado mais caro da General Electric, líder nesse mercado, custa 140 mil.

Quem assina o contrato pelo Consórcio do Nordeste é o governador Rui Costa, do PT. Semanas depois da formalização do acordo, a Biogeoenergy começou a construir uma fábrica de ventiladores pulmonares em Camaçari, na região metropolitana de Salvador, com capacidade para produzir até cem equipamentos por dia. “A Bahia se sente privilegiada por uma fábrica dessa natureza se instalar por aqui”, disse na época o vice-governador João Leão, do PP, ao jornal A Tarde. Em maio, a Biogeoenergy assinou um termo de doação de trinta ventiladores mecânicos à Prefeitura de Araraquara, comandada pelo petista Edinho Silva, ministro na gestão de Dilma Rousseff. Os equipamentos deveriam ser entregues ao consórcio até o dia 23 de abril. Mas até a última sexta-feira, 5, nenhum aparelho havia sido entregue nem ao Consórcio do Nordeste, nem à Prefeitura de Araraquara.

No fim de maio, a Biogeoenergy apresentou o “Respira Brasil” em um hospital do Exército em Brasília. No evento, havia um assessor do Ministério da Ciência e Tecnologia, do ministro amigo do inventor do aparelho. Segundo Fasano, a Biogeoenergy mantinha conversas com a pasta para fechar contrato de fornecimento de ventiladores com o governo federal. Mas não houve tempo. Na manhã do dia 1º, segunda-feira, Taddeo e o sócio dela na Hempcare, Luiz Henrique Ramos, foram presos em Brasília; enquanto isso, Paulo de Tarso Carlos, da Biogeonergy, era detido no Rio de Janeiro. No total, foram cumpridos quinze mandados de busca na Operação Ragnarok, da Polícia Civil da Bahia, que apura irregularidades na negociação dos ventiladores. De acordo com a assessoria da Secretaria de Segurança Pública da Bahia, o trio é investigado por associação criminosa, estelionato e lavagem de dinheiro. No total, 150 contas bancárias pertencentes às empresas foram bloqueadas pela Justiça. Taddeo, Ramos e Carlos foram soltos cinco dias depois, quando venceu o prazo dos decretos judiciais de prisão temporária. A delegada Fernanda Asfora, que coordenou a operação, não quis falar com a piauí. A operação provocou a demissão do secretário da Casa Civil do governo baiano, Bruno Dauster. Nesta segunda-feira, 8, o inquérito passou a tramitar no Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde correm inquéritos contra governadores. Procurada, a assessoria do tribunal não informou por que a investigação passou a tramitar na Corte.

A assessoria da Biogeoenergy negou que o custo de produção de cada ventilador tenha sido de 5 mil reais, mas não informou valores. Segundo nota da empresa, o “Respira Brasil” é “de última geração” e atende as especificidades da Anvisa. “O equipamento passou em todos os testes a que foi submetido e aguarda apenas a autorização do órgão federal para que a produção comece.” A Biogeoenergy disse que, inicialmente, a Hempcare entregaria ao Consórcio do Nordeste ventiladores importados da China, e somente quando não conseguiu fazer a importação é que procurou a Biogeoenergy para obter os aparelhos. “Não temos compromissos firmados ou assinados com o Consórcio do Nordeste e, portanto, nenhuma responsabilidade sobre a quebra de contrato da Hempcare com os governos do Nordeste.”

Nenhum representante da Hempcare foi localizado na última semana para comentar o caso – todos os telefones que constam no site da empresa estão inoperantes. A assessoria do Ministério da Ciência e Tecnologia não se manifestou. Procurada, a assessoria do governador da Bahia, Rui Costa, repassou o assunto para a assessoria do Consórcio do Nordeste. O Consórcio negou responsabilidades no caso e disse ter sido enganado pela empresa Hempcare – tanto que foi o próprio consórcio quem acionou a Polícia Civil baiana.

Foto: Atual governador João Azevedo e o padrinho político, ex-presidiário Ricardo Coutinho (Imagem ilustrativa)



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