Lockdown pode terminar em 'tiro e morte', diz prefeito de Manaus




O prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto (PSDB), foi às lágrimas mais uma vez ao descrever a situação dramática enfrentada pela maior cidade da Amazônia em meio à pandemia do novo coronavírus.

"Todo dia eu vejo mortes de pessoas que conheço", diz o tucano em entrevista à BBC News Brasil. "Isso só não mexe com uma pessoa com o coração muito ruim: impotência, falta de recursos, e morrendo gente, morrendo gente."

Ele prossegue, citando o episódio em que o filho de um homem que morreu pelo coronavírus na capital amazonense atacou um dos profissionais responsáveis pelo enterro.

"O coveiro! O coveiro. Se tivesse que espancar, espancasse o governador, espancasse a mim. Mas o coveiro..."

Segundo ele, o número de mortes na cidade passou da média histórica de 20 a 30 enterros por dia para um pico de 140. "Agora estamos estabilizados em uma média de 120, o que é muito."

O prefeito, no entanto, resiste à recomendação do Ministério Público do Estado de implementação de um lockdown (confinamento obrigatório), citando risco de caos social em Manaus.

"(Alguém) joga uma pedra em alguém, começa um tiroteio com bala de borracha que pode cegar alguém, começa a reação das pessoas, que vivem uma situação de desespero. Algo que termina dando em tiro, dando em morte", avalia.

Na última década, as regiões Norte e Nordeste se revezaram no topo entre as áreas mais violentas do Brasil. Segundo o Atlas da Violência do ano passado, feito com dados de 2017, Manaus era a nona capital entre as líderes em taxas de homicídios no país - no topo estava Fortaleza (CE), seguida de Rio Branco, Belém, Natal (RN), Salvador (BA), Maceió (AL), Recife (PE) e Aracaju (SE).

Por outro lado, cientistas em todo o mundo apontam o lockdown como medida eficaz e necessária para a contenção da doença. Nesta semana, em meio ao processo de reabertura parcial em países como Alemanha e Espanha, a epidemiologista da Organização Mundial da Saúde Maria Van Kerkhove alertou para os riscos associados ao relaxamento. "Se as medidas de lockdown forem levantadas abruptamente, o vírus pode decolar."

A entrevista acontece dias depois de Arthur Virgílio enviar vídeos pedindo ajuda a personalidades internacionais — do presidente francês Emmanuel Macron ("se ele tem toda essa preocupação com a Amazônia, deveria ajudar") à ativista Greta Thunberg ("Pirralhos mentais a chamam de pirralha").

Segundo ele, que diz não se "preocupar nem um pouco" com a reação do presidente Jair Bolsonaro aos apelos, chegou a hora de perceber se as falas de líderes internacionais sobre a região amazônica "são da boca para fora ou sérias".

Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil — Uma das várias imagens que rodaram o mundo nesta crise é especificamente de Manaus: aquelas valas comuns abertas em cemitérios da cidade, aqueles tratores abrindo longas fileiras que posteriormente receberiam vítimas do coronavírus especialmente. Qual é a situação do sistema funerário da cidade neste momento?

Arthur Virgílio Neto — Bem, agora está controlada. Nós estamos preparando um projeto de memorial em nome de todas as pessoas ali enterradas. Estamos trabalhando a separação, para cada uma ser identificada.

Mas os hospitais têm cenas que também correram o mundo e é obvio que as pessoas morreram e não tinha como enterrá-las. Porque nós subimos de 20 a 30 enterros por dia para um pico de 140 e não sei quantos, e agora estamos estabilizados em uma média de 120, o que é muito.

A gente sabe que guerra é guerra. Nós temos uma guerra. Eu encaro o corona como uma guerra. Nós tivemos que enterrar as pessoas. Nós não poderíamos simplesmente olhar um para o outro, indecisos, como aconteceu em alguns hospitais, doentes juntos com mortos. Nós não podíamos fazer isso.

Nós tínhamos que enterrar. E a ordem que dei para o secretário de Limpeza Pública era que procurasse dar um máximo de dignidade, mas que enterrasse com presteza, para evitarmos que aquilo virasse algo muito pior.

BBC News Brasil — O senhor falou da média normal de enterros na cidade, que variava entre 20 e 30. Na terça-feira, 111 pessoas foram sepultadas, portanto pelo menos 80 a mais que a média histórica. Destas 111 sepultadas, só 13 tiveram o diagnóstico de covid-19. Dezenas foram enterradas com insuficiência respiratória ou "causa desconhecida". Isso expõe uma possível subnotificação brutal na cidade.

Virgílio Neto — Quando eu vejo insuficiência respiratória grave, eu leio covid. Quando vejo causas não identificadas, eu não rio porque não é hora de rir, mas…

Eu estou no hospital, aí eu morri e ninguém sabe por que eu morri? É complicado. Eu leio covid. Quando eu leio pneumonia nos boletins dos hospitais, eu leio covid. É obvio que há subnotificação aqui e no Brasil.

BBC News Brasil — O senhor gravou alguns vídeos com apelos para líderes mundiais. O que o levou a pedir ajuda externa, uma vez que a gente espera que a ajuda venha de dentro do próprio país. Por que apelar para fora?

Virgílio Neto — Primeiro, porque não estava chegando nenhuma ajuda aqui. Começou agora, depois da conversa com o ministro da Saúde, uma pessoa muito agradável, mas veio uma coisa mínima, ínfima.

É uma região de interesse planetário. Tem obviamente soberania nacional, mas é uma região de interesse planetário. É hora desse interesse planetário se manifestar de maneira concreta, não só fazendo cobrança.

Não sou do tipo que vive de passado, não uso esses argumentos, que são muito parecidos com os do presidente, que acha que devastar não faz mal. Eu sou contra garimpo no Amazonas, contra agronegócio no Amazonas. Faça em outro lugar.

Sou a favor de aproveitar o nosso banco genético, mantê-lo intacto, para trazer prosperidade para o nosso povo. Precisamos, neste campo, também de cooperação nacional e internacional. E se nós somos essa região importante, e se o Amazonas é o cerne dessa região, eu não entendo como que, em uma hora de aflição, na única vez em que o Estado pode alguma coisa, ele não é atendido. Deve ser atendido. Ou o discurso dos líderes mundiais é da boca para fora, é para fazer bonito perante a imprensa, ou esse discurso é sério.

Tudo o que acontece de ruim para o povo do Amazonas se reflete na floresta, se reflete nos rios, se reflete na contenção do aquecimento global.

Eu acabei de falar com um jornal francês, uma das ajudas que eu espero claramente é a do presidente Emmanuel Macron. Porque o discurso dele indica isso. Eu gosto de juntar meu discurso e a minha prática. Se ele tem toda essa solidariedade e preocupação inteligente com uma boa governança na Amazônia, deveria ajudar.

BBC News Brasil — O apelo ao presidente Macron especificamente, aquele que foi o mais enfático durante os incêndios, pode gerar desconforto com presidente brasileiro. Bolsonaro se colocou frontalmente contra Macron, inclusive na Assembleia-Geral da ONU. Como lida com esta tensão?

Virgílio Neto — Vou te dizer como lido com o Bolsonaro. Bolsonaro todos os dias me cria tensão. Quando ele briga com fulano, com beltrano, com não sei quem. Ele tem um inimigo por dia. E eu crio de vez em quando problemas para ele quando respondo, quando falou ou dou uma entrevista.

Isso aí não me importa o mínimo. Eu não concordo com a política externa dele, não concordo com o ministro de Relações Exteriores dele. Não é uma escolha sequer madura, se tratava de um embaixador júnior. Então, não estou nem um pouco preocupado.

Então, eu me dirigi ao G7, aos líderes principais. Me dirigi a eles. Se ajudarem, ajudaram, se não ajudarem, é porque não compreendem a causa amazônica.

E por que a Greta? O pessoal do Bolsonaro cai em cima de mim. Quando vejo a chamarem de pirralha, eu já sei de onde vem.

BBC News Brasil — De onde vem?

Virgílio Neto — Bolsonaro. Do pessoal dele. Ser pirralho era tão bom, eu tenho tanta saudade. Terrível é se eu fosse um pirralho governando o país, né?

E a Greta, a quem chamam irresponsavelmente de pirralha, alguns pirralhos mentais a chamam de pirralha, é quem está conversando conosco para chegarmos a alguma coisa objetiva, alguma coisa prática.

A ajuda que vier é bem-vinda. Precisamos de medicamentos, equipamentos de proteção individual, tomógrafos.

BBC News Brasil — O senhor já fez diversas críticas à condução do presidente Bolsonaro nesta crise, disse que não pode esperar nada dele, e ao mesmo tempo se mostra otimista em relação ao apoio dos países do G7. O senhor tem mais esperança na ajuda vinda de fora do que na vinda de dentro?

Virgílio Neto — É difícil mensurar o que representa uma declaração de uma Greta. É difícil mensurar o que se passa na cabeça de uma pessoa que não conheço, mas admiro à distância, que é o presidente Macron. É difícil mensurar o que se passa na cabeça de um homem que poderia ter morrido de covid, o primeiro-ministro (britânico) Boris Johnson.

Dos líderes do G20 e dos países que se pode considerar expressivos, nós temos o único líder que insiste em contradizer seu próprio Ministério da Saúde. Eu tenho esperanças no ministro da Saúde, porque ele assumiu o compromisso comigo, acredito nele. E também tem uma coisa, eu não vejo o presidente Jair Bolsonaro sentar e despachar.

BBC News Brasil — O Ministério Público entrou com uma ação civil pública pedindo que a Prefeitura de Manaus e o governo do Estado decretassem lockdown. E o senhor classificou a medida como extrema e arriscada. Mas o senhor já disse que viu "cenas de terror" na capital, disse que defende medidas mais duras, chegou a chorar ao narrar o que acontece na cidade. Quando se sugere uma medida que vem sendo adotada em todo o mundo, nas principais capitais, o senhor diz que é extremo. Não há contradição aí?

Virgílio Neto — Não, você dá como única solução o lockdown. Mas eu penso, por exemplo, numa rebeldia popular grande. Daqui a pouco tem eleição. Um oportunista joga uma pedra… Eu já enfrentei uma ditadura. Apesar da minha idade, se tivesse outra, e não vai ter, eu enfrentaria de novo. Eu sei o que é a repressão, ela nem sempre depende do comandante. Dizia-se que na ditadura, não se tinha tanto medo do general, tinha medo do guarda da esquina.

Então, joga uma pedra em alguém, começa um tiroteio com bala de borracha, que pode cegar alguém, começa a reação das pessoas, que vivem uma situação de desespero. Algo que termina dando em tiro, dando em morte. Eu acho que é uma medida que deve ser tomada em ultimíssimo grau, assim como nós fazemos com a entubação. Último grau…

BBC News Brasil — Prefeito, qual é o último grau, se o senhor já classificou a situação como colapso na saúde pública, como filme de terror? O que mais precisa acontecer?

Virgílio Neto —A situação de horror é amenizada, se Deus quiser, com a chegada, que foi uma intervenção benigna do ministro (Nelson) Teich e do general (Eduardo) Pazuello, chegou muita gente para o governo do Estado. Se essas pessoas vão resolver ou não, a gente vai ver daqui a pouco, se vai melhorar... Acho que piorar não pode, deverá melhorar.

Nosso hospital de campanha vai crescendo a cada momento. Estamos com organização nos sepultamentos. Acabou aquela algazarra, aquela confusão. Aquela história de o filho de alguém que morreu querer agredir o coveiro, que é o sujeito mais exposto ao coronavírus.

BBC News Brasil — Então o senhor enxerga no lockdown uma janela para uma possível convulsão social, é isso?

Virgílio Neto — Eu queria ter certeza de que não, para poder apoiar o lockdown. Eu falei com todas as pessoas importantes nesse episódio do lockdown e não encontrei segurança nenhuma. Nenhuma. Ninguém seguro que este é o melhor caminho.

Eu encontrei pessoas que dizem que nós não temos instrumentos de repressão para sequer reprimir de verdade uma rebeldia popular de grandes proporções. Então, eu olho com responsabilidade o lockdown. O MP sugeriu, sugeriu. Vamos analisar, fazer uma teleconferência e discutir. Mas, eu não posso declarar um lockdown sem ter absoluta segurança de que preciso dele como a gente usa um respirador. A gente usa o respirador mecânico só quando a gente acha que a pessoa vai morrer.

BBC News Brasil — Agora, prefeito, não está um pouco em cima da hora, ou tarde para saber se o lockdown faz sentido ou não e qual seria a alternativa?

Virgílio Neto — Eu acabei de falar que chegou um reforço brutal para o governo do Estado. Dois Boeings (com insumos).

Mas, quando você se referiu ao episódio em que eu chorei na televisão. Eu sou um cara muito sentimental. Muito sensível. E também não fui criado em uma família em que homem não chora. Chora homem e chora mulher. Na minha família, sai na porrada homem, sai na porrada mulher. Na minha família, a gente topa tudo. Tem de tudo lá.

Eu explodi sim porque você vê a pregação do "vai para a rua", e eu dizendo "não vem para a rua", e o pessoal não me atende e vai para a rua. E as pessoas morrem.

Diferentemente do H1N1, que matou várias pessoas no mundo, eu não tenho de cabeça o nome de nenhuma pessoa que tenha morrido de H1N1, uma pessoa próxima a mim. Eu não lembro de ninguém. Hoje, todo dia eu vejo mortes de pessoas que conheço. Ou pessoas humildes dos bairros, cujos nomes eu identifico, ou pessoas ricas que eu conheço também, pessoas de classe média que eu conheço.

Todo santo dia eu vejo isso. Isso só não mexe com uma pessoa com o coração muito ruim. Um coração muito desonesto até, você não sentir uma coisa dessa. E a impotência, e a falta de recursos, os recursos não vinham, e não vieram ainda, nós estamos lutando com nossas próprias forças. E morrendo gente, morrendo gente.

Coveiro quase espancado por filho de uma pessoa que ia ser enterrada. O coveiro! O coveiro! Se tivesse que espancar, espancasse o governador, espancasse a mim, mas o coveiro. Quer dizer, alguém não se condoer com isso, não se emocionar com isso… Me parece que pelo menos é alguém diferente de mim.

Eu tenho uma máxima: na minha vida, quando eu me emociono, eu choro. Na política, quem chora é quem me enfrenta.

BBC News Brasil — O senhor está no segundo mandato como prefeito, foi deputado várias vezes, foi senador, foi ministro de Estado, representando também de alguma maneira a sua região. Qual é sua autocrítica neste momento de colapso?

Virgílio Neto — Eu não sei como começou o primeiro caso. Teoricamente, tinha que ser detectado pela rede primária. Mas pode ter sido alguém que sentiu uma gripe, se automedicou, contagiou a família toda. Eu não sei te contar essa história.

Uma autocrítica que fiz ontem com o secretário de Saúde: nós não falávamos em dengue aqui desde o final do primeiro ano do governo. Agora é época de dengue aqui e uma pessoa acusou dengue outro dia.

Eu acho que nós demos uma certa relaxada, na obsessão de enfrentar o corona, em relação a outras doenças, endemias ou não. E a obsessão nossa ficou durante esse tempo inteiro covid, covid, covid, e abrimos espaço para termos um caso de dengue.

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R7

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