Especialistas afirmam que sem-teto deixam de ser prioridade para a classe política por não terem título de eleitor



Dudu é o apelido de um homem que vive na rua desde que se lembra. Ele trabalha vigiando carros em uma área nobre de Brasília durante parte da manhã e da tarde, quando larga tudo para “conversar com Deus” e buscar abrigo em algum lugar tranquilo. O senhor de pele morena, cabelos desgrenhados, barba por fazer e olhos castanhos não entende muito bem o cenário político do Brasil, mas se mostra indignado com as histórias de corrupção. Aparentando mais de 45 anos, acredita que tirou o título de eleitor há 10. Tentou usar o documento uma única vez, em 2014, quando decidiu votar na ex-presidente Dilma Rousseff (PT). Acabou impedido pelo mesário, que disse que ele não podia permanecer na fila por causa do “cheiro forte” que exalava. Havia três dias que não tomava banho.

Não existem levantamentos atualizados sobre o número de sem-tetos no país. O mais recente é um compilado feito por ONGs que apontam que, em 2012, cerca de 1,8 milhão de pessoas viviam em domicílios improvisados — como grutas, galpões, tendas, pontes e barracas. O número oficial é do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010. A estimativa mostra 280 mil pessoas na mesma situação. São pessoas que vivem em meio à crueldade da miséria social e não fazem parte dos planos de quem concorre a cargos eletivos, dizem especialistas.

“Moradores de rua e presidiários não fazem parte dos planos de governo porque eles não elegem ninguém. São duas populações extremamente abandonadas no discurso político e eleitoral. Muitos não podem votar ou outros tantos não conseguem exercer esse direito por estarem sem documentação”, explica a historiadora Marjorie Nogueira, do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UnB). Ela explica que os discursos para cativar a população mais empobrecida praticamente não existem, pois eles são desprestigiados e invisibilizados, como se não fizessem a menor diferença para o quociente eleitoral.

Entranhados em pequenas brechas ofuscadas pelos prédios que abrigam o poder, há quem troque o voto por comida. É o preço do apoio de uma mulher que vive na Rodoviária do Plano Piloto, a menos de 5km do Palácio do Planalto, símbolo maior da República brasileira. Atenta às necessidades da Justiça Eleitoral, ela procurou saber o procedimento para fazer o recadastramento biométrico. Está com todas as obrigações em dia. A artesã diz não ter ideologia, e conta que escolhe o nome que digitará na urna eletrônica nos acampamentos dos movimentos sociais que frequenta.

Antes de votar, qualquer cidadão precisa preencher os requisitos exigidos pelo Tribunal Regional Eleitoral (TRE). Um deles é a moradia. Como as pessoas em situação de rua não têm residência, cadastram o endereço das casas de passagem. Em uma unidade de Brasília, existe até um depósito para guardar os documentos dos sem-teto. Também há pastas para documentos mais urgentes, como uma intimação da Justiça Eleitoral à qual o Correio teve acesso. É uma ordem para que alguém regularize sua vida de eleitor até a próxima sexta-feira.
"Analfabetos" 
“Muita gente acredita que os moradores de rua são desimportantes porque acham que eles não têm título. Muitos, de fato, perdem. Alguns não conseguem votar porque não sabem usar a urna eletrônica. Outros são analfabetos. Tem bastante coisa que acaba errada ou anulada”, explica o advogado Francisco Emerenciano, do escritório Emerenciano Palomo & Advogados Associados, especialista em direito eleitoral.

Para tentar diminuir as diferenças sociais, o ministro do Ministério de Desenvolvimento Social, Alberto Beltrame, diz que investiu R$ 2,8 bilhões para a manutenção de uma rede “de proteção social”. “Esse dinheiro serve para promover uma vida melhor às pessoas em situação de rua. Quando isso acontece, as pessoas se interessam pelo que está ao redor. E, entre eles, está o interesse pelo voto, que é um dos mais sagrados da nossa cidadania. É o voto que permite à sociedade escolher seus representantes e, assim, ajudar no destino do país”, afirma.

A última vez que o Ministério do Desenvolvimento Social divulgou uma pesquisa sobre o número de moradores de rua no Brasil foi no ano de 2007, há mais de uma década. O estudo revelou que havia 92,2 mil famílias inscritas no Cadastro Único como “pessoas em situação de rua”.
Esperança de voltar
Robertinha nasceu Carlos Antônio. E detesta o sobrenome, que prefere não dizer. Amigos dizem que ela foi expulsa de casa porque a família nunca entendeu sua vontade de mudar de sexo. Deixou as ruas no começo dos anos 2000, logo após se formar num curso de manicure em uma casa de assistência social no Entorno. Soube que o dinheiro daquela estrutura que mudou a vida saiu dos cofres do governo e decidiu que o voto seria sua retribuição. Tentaria eleger alguém que continuasse o bom trabalho. Organizou todos os documentos mas, naquela época, não foi autorizada a usar o nome social. Como eleitora, continuava sendo Carlos. Desistiu de votar.

Durante um tempo, tentou se aproximar de autoridades que a ajudassem a resolver essa situação. Dizia que os votos colocavam as pessoas nos lugares onde era possível interceder pelos outros. Nunca conseguiu que lhe estendessem a mão. Robertinha tentou mobilizar sua comunidade e os amigos da rua para puxar votos. Nunca deu resultado, pois nenhum candidato quis colocar os sem-teto e “a mulher em construção”, como ela diz, no palanque. Desistiu mais uma vez de votar. Mudou-se para a Europa há mais ou menos quatro anos, onde vive em um pequeno apartamento.

Planeja voltar para o Brasil em outubro. Quer visitar a irmã e ver se atualiza o nome do título eleitoral. Se conseguir, talvez, tome coragem para votar pela primeira vez. Ainda não sabe qual seria seu candidato. “Honestamente, eu não sei como está a situação no Brasil. Onde moro, perto de Bruxelas, o número de pessoas em situação de rua é bem menor. É quase nulo. O governo se preocupa não apenas com a sobrevivência delas, mas também com seu bem-estar. O brasileiro ainda precisa aprender muito com os países mais velhos”, escreve em mensagem enviada pelo WhatsApp.
O que diz a lei
O artigo 3º da Constituição Federal trata das desigualdades sociais no país e coloca como princípio fundamental da República erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais. Confira 

Art. 3º
Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I — construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II — garantir o desenvolvimento nacional;
III — erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV — promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação

Redação com dados da UNB

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